Fantasmas da Análise sintática 17) Existe a vírgula?

“Ameaças típicas de um falastrão o povo brasileiro não as teme.” Está correta a frase anterior, inclusive a repetição do termo pelo pronome “as”?

Não. Ela não está correta. Falta uma vírgula depois de “falastrão”. Basta saber um pouco de análise sintática para entender a construção usada pelo autor da frase.

O sujeito do verbo “temer” é “o povo brasileiro”. Esse verbo, alterado frontalmente pelo advérbio “não”, pede um complemento sem preposição, um objeto direto.

O autor do texto começa o período revelando esse objeto logo no início, para destacá-lo. No final desse objeto antecipado, tem de haver a tal vírgula.

Vale, ainda, ressaltar a importância do pronome “as”, que retoma o objeto antecipado, em forma de pleonasmo, com o claro objetivo de enfatizar o termo a ser repudiado com maior veemência: “ameaças típicas de um falastrão”.

A frase certa é: “Ameaças típicas de um falastrão, o povo brasileiro não as teme.”  


Fantasmas da Análise sintática 16) Tratava ou tratavam?

Professor Ozanir, está certa esta concordância do verbo: “Não se tratavam de pressões esporádicas. Eram interferências reais e constantes.”

Novamente, saber análise sintática é fundamental para perceber que há erro na flexão do verbo. É um caso que passa perto do anterior, mas cuja situação, na prática, termina sendo bem diferente, principalmente no que se refere à concordância do verbo.

“Tratar” é um verbo que não pede objeto direto, mas, sim, indireto. O “se”, que o precede, é antecipado devido à presença do “não”. Mas isso não importa. Vindo antes ou depois, ele não consegue formar voz passiva porque não há OD.

Então, o que ocorre?

A presença do “se” apenas serve para indeterminar o sujeito agente. Por isso, ele é conhecido com indeterminador do sujeito.

É fácil guardar: havendo OD, esse termo passa a ser sujeito paciente; está formada a voz passiva, e o “se” é apassivador.

Não havendo OD, não existe o que possa virar o sujeito paciente; assim, esse termo fica indeterminado, e, dessa forma, o “se” é indeterminador.

E a concordância? No caso do “se” apassivador, o verbo deve concordar como o novo sujeito, o termo que era OD.

No caso do “se” indeterminador, não há com que concordar; então, ele fica na terceira pessoa do singular: “Não se tratava de pressões esporádicas. Eram interferências reais e constantes.”


Fantasmas da Análise sintática 15) Por que é sujeito?

Mestre, por que, na frase “Não se aceitava, em qualquer situação, os argumentos das agressões ao STF e ao Congresso”, há erro de concordância?

Na verdade, a resposta é bem simples: o erro se encontra no fato de o verbo não estar no plural, concordando com o núcleo do seu sujeito “argumentos”.

Mas vamos devagar, para que todos entendam.

O verbo “aceitar” é transitivo direto: “quem aceita aceita alguma coisa”. E isso, o fato de um verbo que pede objeto direto acompanhado de um “se” – viu-o? antes do verbo, atraído pela palavra negativa “Não” – transformar esse objeto direto em sujeito é uma propriedade do “se”, que, nesse caso, é chamado apassivador.

Na verdade, ele forma uma voz passiva, construção frasal em que o sujeito é o termo que sofre a ação, transformando o OD em sujeito. É como se disséssemos “os argumentos não eram aceitos”. É um conhecimento gramatical anterior ao uso.

Quando se quer formar uma voz passiva, há duas maneiras de fazê-lo. Vejamos como isso ocorre, com o exemplo “O político aceitou a punição”. Primeiro, constata-se que o verbo pede objeto direto: “a punição”. Só assim é possível.

a)     Voz passiva verbal ou analítica“A punição foi aceita pelo político.”

O que era OD, vindo para o início, passou a ser sujeito. O verbo “aceitar”, no particípio, recebe o auxiliar “ser” (“foi”) conjugado no tempo original. “O político” ganha a preposição “por” e se torna o agente da passiva.

b)    Voz passiva pronominal ou sintética“Aceitou-se a punição.”

Perde-se, é claro, o termo agente, que seria o agente da passiva. Simplesmente, coloca-se o “se”, que é chamado de apassivador, e pronto: “a punição”, agora, é sujeito, apesar de colocado depois do verbo.

Foi o que ocorreu na frase da dúvida.   

Não se preocupe com o termo entre vírgulas “em qualquer situação”, pois é um adjunto adverbial, daí estar separado da ideia principal. Faça de conta que ele não existe: “Não se aceitava os argumentos das agressões ao STF e ao Congresso.”

Viu? Com o “se”, o termo posposto ao verbo é o sujeito, que está no plural. Por isso, tem de haver a concordância do verbo com ele: “Não se aceitavam, em qualquer situação, os argumentos das agressões ao STF e ao Congresso.”


 Fantasmas da Análise sintática 14) Adjunto adnominal ou predicativo do objeto?

Professor, na frase “O marido, durante a quarentena, deixou a mulher maluca”, devo entender que a blogueira quis dizer que a mulher foi abandonada ou, de certa forma, violentada intelectualmente pelo marido? Eu que não sei ler ou ela que escreve mal?

Nossa língua, como todas as outras, não é perfeita! Nem sempre é lógica e precisa em todas as suas leituras. Existe realmente uma ambiguidade na frase, e ela começa nos sentidos possíveis para o verbo “deixar”.

Lido com o sentido de “abandonar”, entende-se que o marido “abandonou” uma mulher que já era considerada, normalmente, “maluca”. Ou seja, ela, que já se sabia “meio maluca”, ou “maluca mesmo”, foi abandonada pelo marido, que “fugiu de casa” em plena quarentena.

No entanto, se o verbo “deixar” for lido com o sentido de “tornar”, “fazer ficar”, entende-se que, o marido fez com que ela ficasse “maluca”. Isto é, durante a quarentena, “ele aprontou tantas que a coitada acabou enlouquecendo”.

Isso ocorre, porque, na escrita, com as palavras nessa ordem, não é possível distinguir a função do adjetivo “maluca”. É adjunto adnominal ou predicativo do objeto?

Se fosse na fala, a diferença existiria pela presença ou não de uma sutil pausa entre “mulher” e “maluca”. Sem tal pausa, seria adjunto adnominal; com ela, teríamos o predicativo do objeto. Difícil de perceber...

Outra possibilidade, mais nítida, seria a mudança da ordem das palavras:

a)     “O marido, durante a quarentena, deixou a maluca mulher.”

Veja que, nesse caso, mesmo sendo uma fala um pouco estranha, fica evidente que o adjetivo “maluca” se refere a uma condição inerente, permanente, da mulher, que, com certeza, foi abandonada pelo marido.

b)    “O marido, durante a quarentena, deixou maluca a mulher.”

Agora, muda tudo. Percebe-se que atos praticados pelo marido, durante a quarentena, fizeram a mulher enlouquecer. Ela não era maluca, ficou maluca. Ele não a abandonou, mas talvez fosse melhor se o fizesse, pois, assim, ela não enlouqueceria.

Ainda há mais uma forma de se estabelecer tal diferença, bem mais fácil e nítida, que, na hora de registrar a notícia, poderia ter sido utilizada pela blogueira não deixando dúvidas na leitura:

c)     “Durante a quarentena, a mulher maluca foi deixada (= abandonada) pelo marido.”

Escrita dessa forma, ninguém teria problema na leitura. Ficaria claro que “ele a deixara, a abandonara mesmo”.

d)    “Durante a quarentena, a mulher foi deixada (= tornada) maluca pelo marido.”

Assim, outra maneira de ler seria entendida: “ele fez a mulher enlouquecer”.

Escrever bem passa pelos conhecimentos de análise sintática. E é uma das questões difíceis, um dos fantasmas da Análise sintática. Até o próximo!


Fantasmas da Análise sintática – 13) O verbo “servir” e seus objetos

Mestre, ontem li, num jornal, o seguinte: “O senhor tem aberto mão de oportunidades para melhor servir o Brasil.” Está correto?

Bem, se o objetivo de quem falou foi dizer que “entregaria o Brasil numa bandeja”, podemos aceitar como correta a linguagem, mas seria uma ideia bem ruim.

Parece-me que o que o falante queria dizer era “O senhor tem aberto mão de oportunidades para melhor prestar serviço ao Brasil.”

O que faltou foi um conhecimento básico da regência verbal, no que toca aos complementos do verbo.

Uma mensagem, antes de tudo, precisa ser entendida por quem a lê ou ouve. No caso, está claro o sentido de “ser útil ao Brasil”.

A forma padrão, nesse caso, recomenda que o verbo seja seguido de um objeto indireto (complemento verbal com preposição): “servir a alguém ou a alguma coisa”.

Portanto, a forma culta de falar ou escrever é: “O senhor tem aberto mão de oportunidades para melhor servir ao Brasil.”