Vida de revisor é difícil 36

Mestre, no VOLP/ABL (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras), aparece "toma lá dá cá". Mas, de vez em quando, leio em veículos de comunicação "toma-lá-dá-cá" e "toma lá, dá cá" (com vírgula no lugar dos hifens). Também estariam corretas?

As alterações trazidas pelo Acordo Ortográfico de 2009, com relação ao emprego do hífen, deixam inúmeras dúvidas e, muitas vezes, levam a usos não muito coerentes.

Essa expressão, por exemplo, estaria enquadrada no caso de palavras compostas que criam novos sentidos com elemento de ligação, as quais deixaram se ter os hifens (exceto se forem nomes de vegetais e animais).

São exemplos: “pé de moleque” (= doce), “dia a dia” (= rotina, cotidiano), “disse me disse” (= fofoca) e “não me toques” (melindres), além de “toma lá dá cá”.

O problema é que, nas frases:

a)      “Lá em casa, minha esposa faz um delicioso pé de moleque daqueles do Nordeste.”

b)      “Nesta pandemia, o dia a dia da maioria das pessoas tende a ser monótono.”

- a nova regra fica bem especificada. Veem-se, claramente, as palavras de ligação, ou seja, as preposições “de” e “a”. Portanto, apesar de algumas poucas dúvidas, há coerência em se abandonar os hifens.

Já, nas três seguintes, essa coerência, quanto às palavras de ligação, se perde:

c)      “O professor, meio zangado, pediu que parassem com o disse me disse.”

d)      “Aquela criança mimada é cheia de não me toques.”

e)      “Aquele partido político do Centrão adora um toma lá dá cá.”

- há, na verdade, palavras de ligação? Pelo menos na acepção gramatical, não. Isso gera dúvidas, e alguns, por isso, acabam não acompanhando a nova regra.

Para o usuário da língua portuguesa, no entanto, a resposta à pergunta é bem simples: siga sempre o que aparece no VOLP/ABL: “pé de moleque”, “dia a dia”, “disse me disse”, “não me toques” e “toma lá dá cá”.


Vida de revisor é difícil 35

Esta manchete de jornal – “Firma brasileira pede respeito ao Uruguai!” – é clara ou ambígua?  

Há claramente uma ambiguidade: “a firma brasileira pede que o Uruguai a respeite ou pede que respeitem o Uruguai?

Isso ocorre por não se saber se o termo preposicionado (“ao Uruguai”) é complemento verbal (objeto indireto) ou complemento nominal.

Não é um erro, mas, com certeza, a frase foi mal escrita.

Se a intenção do jornalista fosse dizer que a “firma brasileira pedia que o Uruguai a respeitasse”, deveria escrever:

“Firma brasileira pede ao Uruguai respeito!” – apenas alterando a ordem dos dois objetos;

Ou então: “Firma brasileira pede que o Uruguai a respeite!” – com duas orações e clareza integral.

Se, no entanto, a intenção do jornalista fosse dizer que a firma brasileira queria que respeitassem o Uruguai, seria correto e justo escrever:

“Firma brasileira pede que respeitem o Uruguai!” – com dois verbos e grande clareza;

Ou então: “Firma brasileira pede que o Uruguai seja respeitado!” – com a voz passiva.

Interessante compreender o que leva à má construção: o autor, provavelmente o editor, seguiu certos manuais que dizem que, em manchetes, usa-se a ordem direta (OD antes do OI) e não se colocam dois verbos, isto é, a síntese exige um só verbo.


Vida de revisor é difícil 34

“O saldo da tentativa de golpe naquele pequeno país asiático foram alguns poucos intelectuais presos.” Professor, é absurdo o uso do substantivo “saldo”?

É um caso muito interessante, pois a palavra “saldo” tem seu sentido primário ligado à contabilidade, podendo ter valor positivo (= “saldo credor”) ou negativo (= “saldo devedor”). No entanto, quase sempre seu uso está ligado a situações afirmativas e não negativas, talvez por ser muito utilizada como antônimo de deficit (usei itálico porque é a forma como aparece no VOLP/ABL, já que é considerada como um latinismo).

Assim, devido a esse motivo, há uma aparente incoerência na frase; por isso, o melhor é substituí-la por um sinônimo que já antecipe a noção de perda, de algo negativo, pois, na “tentativa de golpe”, não há coisa alguma a comemorar, mesmo que tenham sido apenas “alguns poucos intelectuais presos”.

A coerência ficaria perfeita no seguinte exemplo:

“O resultado da tentativa de golpe naquele pequeno país asiático foram alguns poucos intelectuais presos.”

Ou então:

“A consequência da tentativa de golpe naquele pequeno país asiático foram alguns poucos intelectuais presos.”  


Vida de revisor é difícil 33

Qual é o uso mais adequado? Nós tínhamos pegado o material? Nós havíamos pegado o material? Nós tínhamos pego o material? Nós havíamos pego o material? E fala-se “pégo” ou “pêgo”?  Antecipadamente, grato!

Sua pergunta se refere a tempos compostos, mas pode ser estendida ao uso da voz

passiva.

A determinação é simples: devem-se usar os verbos auxiliares “ter” e “haver” com as formas regulares dos verbos em questão (aquelas que têm “-do”); e “ser” e “estar”, com os irregulares (os que têm formas diferentes).

1)      “Nós tínhamos ou havíamos entregado a encomenda.”

2)      “Se eles tiverem ou houverem pegado o prêmio, tudo será mais fácil.”

As duas possibilidades são perfeitas. A escolha entre “ter” ou “haver” é uma condição mais ligada ao uso, à aplicação normal da fala.

3)      “A encomenda é ou está entregue por um carteiro.”

4)      “Se tudo for ou estiver pego logo, as explicações não serão necessárias.”

Novamente, são frases que obedecem às regras: com os auxiliares “ser” ou “estar”, opta-se pelas formas de particípio irregular.

É a regra geral, o que talvez explique a minha classificação como algo simples.

No entanto, existem situações especiais, em que a eufonia (boa forma de som, de pronúncia) orienta aquela que se usa. Trata-se de um fato indiscutível e vivo da língua. Há verbos como “ganhar” e “pegar”, em que as formas irregulares soam melhor e, assim, acabam se impondo nas construções do dia a dia.

5)      “Nós tínhamos ou havíamos ganho tal presente.”

6)      “Se eles tiverem ou houverem pego o convite antes, tudo será mais rápido.”

As duas são recomendadas, já que soam bem melhor do que “tínhamos ou havíamos ganhado” ou “tiverem ou houverem pegado”.

7)      “A partida é ou está ganha desde cedo.”

8)      “Se o convite for ou estiver pego antecipadamente, as explicações não serão necessárias.”

Nesses exemplos, então, o uso das formas regulares seria horrível: “é ou está ganhada” e “for ou estiver pegado”.

Finalmente, a pronúncia da forma irregular “pego” pode existir com o timbre aberto (“pégo”) ou fechado (“pêgo”), já que se explica por preferências regionais.

Existe, ainda, outro caso: aquele em que o particípio antecede o substantivo, iniciando uma oração reduzida.

1)      Passado o momento adequado, todos se prepararam para uma nova discussão.

Nos casos dos verbos abundantes, recomenda-se o uso da forma irregular ou até da mais eufônica:

2)      Gasto o último dinheiro, ficou evidente a ruína do grupo.

3)      Paga a última prestação, ele, finalmente, sentiu que era hora de trocar o carro.

Bons estudos!


Vida de revisor é difícil 32

Professor, devo escrever “Bibliotecas-parques” com hífen e com os dois substantivos no plural? Vi que não aparece no VOLP. Não está dicionarizada?

Vamos por partes. Não aparecer no VOLP/ABL é uma possibilidade, uma vez que a “invenção” de palavras é uma realidade, principalmente num país como o nosso, onde existe uma população não muito culta e bastante criativa. A velocidade da criação não é acompanhada pelos dicionários e vocabulários.

Para isso, existem as regras da gramática: “trata-se de uma composição (junção de dois radicais) com dois substantivos, sendo que o segundo tipifica o primeiro, levando a uma alteração do sentido básico; nesse caso, deve-se usar o hífen (regra que não mudou com a última reforma ortográfica)”.

No caso de haver dois substantivos com o segundo especificando o primeiro, diz outra regra: “na flexão de número, só o primeiro substantivo deve ir para o plural”, embora seja muito comum alguns autores, mais modernos, por maior aproximação com a realidade da língua falada, admitirem a pluralização dos dois elementos.

Assim, recomenda-se: “bibliotecas-parque”.